Na mídia
Cartilha: Soluções para contratos de infraestrutura em cenários complexos (Covid-19)
30/10/2020
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30/10/2020
A rápida propagação da COVID-19 ao redor do mundo criou um estado de alerta global, com impactos ainda não completamente entendidos e/ou mensurados. Não se trata, tão somente, de uma questão de saúde pública; a paralisação das atividades econômicas e a necessidade de significativos investimentos públicos emergenciais, com vistas à mitigação dos efeitos da pandemia, geram, de imediato, e continuarão a ensejar, durante algum tempo, severa instabilidade nas cadeias produtivas e no comércio mundial.
O setor de infraestrutura e construção será particularmente impactado. Pensando nisso, o time do Toledo Marchetti Advogados reuniu seus colaboradores e redigiu a presente cartilha, denominada “Soluções para contratos de infraestrutura em cenários complexos (COVID-19)“, por meio da qual se pretende contribuir com o debate respeitante às principais medidas a serem adotadas, pelos players do setor, com vistas ao enfrentamento dos extraordinários eventos em curso, no âmbito de projetos iminentes ou já em andamento.
A presente cartilha foi dividida em 03 (três) capítulos, cada qual respeitante: (i) aos principais impactos da crise nos contratos de infraestrutura e construção; (ii) às mais importantes providências de gestão de crise a serem implementadas para os contratos vigentes; e (iii) às melhores recomendações para a negociação de contratos em tempos de crise.
Boa leitura!
A crise deflagrada pela COVID-19 tem demonstrado reflexos diretos na economia e, em particular, no setor de infraestrutura e construção, já combalido pelo cenário macroeconômico adverso e pela escassez de investimentos públicos e privados.
É possível antever, embora em horizonte ainda difícil de mensurar, que a implantação de novos projetos e a execução de contratos já existentes venham a ser bastante prejudicadas. Esperam-se, em breve, diversos inadimplementos contratuais, que resultarão tanto da inviabilização, total ou parcial, da realização de obras e fornecimentos quanto, no limite, da interrupção dos fluxos de capitais pertinentes, com a consequente suspensão, integral ou não, de financiamentos e pagamentos em geral.
Em razão do cenário de pandemia ora em curso, muito tem se questionado acerca da abrangência e das condições de aplicação, aos casos concretos, das regras legais e contratuais pertinentes aos eventos de caso fortuito e/ou força maior.
O Código Civil Brasileiro (“CC“) qualifica caso fortuito e/ou força maior como “fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir” (art. 393, Parágrafo Único, CC). Daí decorre que a caracterização de caso fortuito e/ou força maior pressupõe, cumulativamente, que o evento: (i) não tenha sido causado por qualquer das partes; (ii) seja superveniente à assunção das obrigações (em regra, à celebração do contrato); e (iii) seja imprevisível e inevitável, inclusive quanto às suas consequências.
Parece-nos que a pandemia de COVID-19 guarda, pois, características necessárias ao enquadramento, em tese, nos aludidos conceitos de caso fortuito ou força maior. Mas o que isto significa na prática?
Determina a legislação vigente que, ocorridos caso fortuito e/ou força maior, o devedor de dada obrigação por eles afetada não responderá pelos prejuízos resultantes do evento, salvo se expressamente tiver por eles se responsabilizado (art. 393, caput, CC).
É usual que contratos de infraestrutura e construção, de natureza mais complexa, prevejam regulação detalhada quanto à forma, aos efeitos e às consequências dos eventos de caso fortuito e/ou força maior, para além do tratamento genérico dado pelos dispositivos legais. Nestes casos, embora as soluções contratuais possam ser divergentes, a prática indica que, costumeiramente, em instrumentos mais equilibrados, cada parte responderá pelos impactos econômico-financeiros que vier a suportar em decorrência do evento; os reflexos temporais, de sua vez, costumam ser postos à conta, tão somente, da contratante, fazendo jus a contratada à pertinente revisão de cronogramas e prazos.
Nada impede, por óbvio, que arranjo distinto tenha sido acordado, a depender das peculiaridades de cada projeto. É essencial, deste modo, a análise cuidadosa dos instrumentos contratuais e dos procedimentos aplicáveis, como mais bem explicado abaixo (v. subitem 2.1, abaixo)..
Qualquer que seja o caso, o contrato, possivelmente, não esgotará todas as potenciais divergências que advirão dos inadimplementos causados pela pandemia de COVID-19. Daí a necessidade de adoção de medidas que viabilizem a solução rápida e consensual para os conflitos, na linha que guia esta cartilha.
No âmbito dos contratos privados, especificamente em relação aos contratos de empreitada, o art. 625 do CC prevê a possibilidade de suspensão da obra, pelo empreiteiro, por motivo de força maior.
Para aplicação do referido dispositivo legal, os tribunais exigem comprovação cabal da ocorrência do evento de força maior, bem assim de sua influência no cumprimento do contrato. Sempre será imprescindível evidenciar, com isso, a efetiva causalidade entre a necessidade da suspensão e o fato superveniente e imprevisível aventado.
Tal qual ocorre em relação aos inadimplementos oriundos de caso fortuito ou força maior, os contratos de infraestrutura e construção mais elaborados costumam detalhar hipóteses, procedimentos e alocações de responsabilidades conexos às suspensões, totais ou parciais, de sua execução, impostas por eventos não imputáveis às partes.
A experiência indica que esta prerrogativa, usualmente, é colocada à disposição da contratante; não é incomum, entretanto, que a contratada também seja autorizada a determinar a suspensão das obras, sob condições mais restritas.
Como norma, havendo suspensão de obras por motivos não atribuíveis à contratada, os instrumentos contratuais mais equilibrados habituam preconizar o custeio, pela contratante, das atividades mínimas e indispensáveis a serem exercidas durante a paralisação; costuma haver, também, permissões para a eventual rescisão dos contratos, por uma ou por ambas as partes, acaso o evento ensejador da suspensão perdure para além de certo período.
Situação não muito diversa se apresenta em relação aos contratos administrativos. A Lei n. 8.666/1993 estabeleceu, em seu art. 78, XIV, que a Administração Pública poderá, até prazo máximo de 120 (cento e vinte) dias, suspender a execução do contrato, mediante pagamento das indenizações cabíveis – p. ex., as decorrentes de sucessivas e contratualmente imprevistas desmobilizações e mobilizações.
Nesta conjuntura, a legislação assegura, ao contratado, a opção pela suspensão do cumprimento das obrigações assumidas, até que seja normalizada a situação. Também se autoriza, ao particular, rescindir o contrato, acaso superado o mencionado prazo limite de 120 (cento e vinte) dias; este direito inexiste, contudo, se configurado cenário de calamidade pública – como é, justamente, o caso em comento.
A Lei n. 8.666/1993 também deu margem, nessa esteira, à possibilidade de o Poder Público suspender (atrasar) pagamentos devidos, ao particular, em razão de obras, serviços ou fornecimentos, ou parcelas destes já recebidos ou executados, por até 90 (noventa) dias, sem direito de rescisão contratual (o qual só surgiria depois de esgotado este período). Cuidando-se, todavia, de contexto de calamidade pública, a prerrogativa rescisória mencionada, por expressa disposição legal, não se aplicará, desde que a Administração Pública comprove nexo de causalidade entre o atraso nos pagamentos e o reconhecimento do cenário calamitoso.
De qualquer modo, também na hipótese de atraso nos pagamentos, assegura-se ao contratado o direito de optar pelo sobrestamento do cumprimento de suas obrigações, até que seja regularizada a situação. Não há consenso, todavia, em nossos tribunais, quanto ao marco em que dita prerrogativa surgiria: a data em que caracterizado qualquer atraso de pagamento, de um lado, ou o momento em que fosse configurada mora superior a 90 (noventa) dias, de outro.
Certamente, com o aclaramento das consequências da COVID-19 sobre a equação econômico-financeira dos contratos vigentes, surgirão diversos pleitos (claims) de parte a parte, seja em virtude dos impactos diretos da pandemia em preços e prazos, seja por força dos efeitos de eventuais paralisações determinadas pela contratante (ou pela contratada).
Por pertinente, tem lugar, aqui, a aplicação do instituto da onerosidade excessiva, previsto no art. 478 do CC, em razão do qual o devedor de qualquer obrigação pode solicitar a extinção do contrato ou a revisão de suas cláusulas, com o fim de reequilibrar as obrigações originalmente pactuadas. Para isto, pressupõe-se, no caso concreto, a demonstração do caráter excessivo da prestação atribuída a uma das partes, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis – certamente incluída, para tais fins, no tocante a contratos já celebrados, a pandemia da COVID-19.
O cabimento de cada pleito dependerá da análise diligente das matrizes de alocação de riscos e responsabilidades pertinentes a cada contrato, conforme tratado adiante nesta cartilha (v. subitem 2.1, abaixo). Também será decisivo o grau de adoção de rotina hígida de administração contratual, segundo explicado no subitem 2.2, abaixo.
Considerações parecidas se aplicam aos contratos administrativos.
A Administração Pública ostenta certas prerrogativas em relação ao particular, as quais estão consubstanciadas, p. ex., nas denominadas “cláusulas exorbitantes”. Dentre tais prerrogativas, tem-se, a título de ilustração, a possibilidade da alteração unilateral dos contratos administrativos, desde que respeitados os direitos do contratado, “para melhor adequação às finalidades de interesse público” (art. 58, I, da Lei n. 8.666/1993).
A despeito disso, parece preferível, para todos os envolvidos, que se busquem medidas consensuais, na esteira do art. 65, II, ‘d’, da Lei n. 8.666/1993, a fim de “restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contratado e a retribuição da administração para a justa remuneração da obra, serviço ou fornecimento, objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato, na hipótese de sobrevirem fatos imprevisíveis, ou previsíveis porém de consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, ou, ainda, em caso de força maior, caso fortuito ou fato do príncipe“. São indiscutíveis, nesse panorama, as vantagens de se conferir, ao gestor público, flexibilidade para negociar, com o contratado, soluções amigáveis para as dificuldades oriundas da pandemia de COVID-19.
Afora os problemas contratuais acima tratados, o agravamento do cenário recessivo poderá dar azo a diferentes dificuldades na viabilização econômico-financeira dos projetos, especialmente no que tange às respectivas financiabilidades. Assim se dará, afinal, em razão de diversos fatores, em especial:
(i) o aumento da aversão ao risco das instituições financeiras, tanto privadas quanto públicas, o que será refletido no recrudescimento das exigências colocadas à liberação de financiamentos e na majoração das taxas de remuneração (spreads) aplicadas;
(ii) a diminuição das expectativas de rentabilidade dos projetos, relevantes nas modelagens de “Project Finance“; e
(iii) a restrição dos níveis de liquidez do mercado, a impactar na exequibilidade das estruturas de financiamento difuso (p. ex., as emissões de “debêntures incentivadas”, na forma da Lei n. 12.431/2011).
Mesmo contratos mais elaborados não costumam trazer, como regra, regramentos minuciosos acerca das consequências da perda (ou do não atingimento) das condições de financiabilidade do projeto. Salvo pontuais exceções, estes eventos costumam ser abordados, simplesmente, como simples causas de terminação antecipada, por culpa da contratante, sem outros desdobramentos próprios.
Dadas as lacunas contratuais usuais, surgirão, certamente, em breve, questionamentos respeitantes à possibilidade de a não obtenção de financiamentos, ensejadora da extinção prematura dos contratos, ser qualificada, ou não, como resultante de caso fortuito e/ou força maior, haja vista o interesse de afastamento (ou de afirmação) da responsabilidade do dono da obra pelo evento. Por se tratar de tema espinhoso, a análise pertinente deverá ser realizada caso a caso.
Dado cenário de obra já em andamento, quais as medidas que devem ser tomadas por contratantes, construtores e fornecedores para a realização de eficiente gestão de crise, capaz de minorar os efeitos negativos da pandemia corrente?
A primeira medida a se tomar resvala na verificação das disposições contratuais que possam ser aplicadas à situação, com foco na matriz de repartição de riscos e responsabilidades.
Para além de compreender os requisitos necessários à caracterização de cada hipótese (caso fortuito e/ou força maior, suspensão etc.), ou os eventuais procedimentos que devam ser seguidos pelas partes, esta providência inicial busca, em última análise, identificar qual a solução mais adequada ao caso concreto, considerado o objetivo de mitigação dos possíveis impactos de custo, prazo e rentabilidade.
A experiência indica que, em regra, a determinação de suspensão das obras, total ou parcialmente, sempre que se mostre impossível ou excessivamente onerosa a continuidade das obras, pode emergir como alternativa mais adequada, a depender da conformação contratual. Não obstante isso, distintos fatores podem, evidentemente, modificar este juízo, apontando outras soluções como mais oportunas, tais como:
(i) O desinteresse em permitir que a outra parte possa rescindir o contrato, se a tanto autorizar o instrumento, no caso de prolongamento excessivo da paralisação;
(ii) O descompasso entre as matrizes de riscos e de responsabilidades estabelecidas em diferentes contratos encadeados, atinentes a um só projeto (p. ex., entre contrato principal e subcontrato, ou entre contrato de EPC e contrato de concessão, dentre outras hipóteses) (v. subitem 3.5, abaixo); e
(iii) A necessidade de gestão de fluxo de caixa, do qual poderá resultar, exemplificativamente, o interesse de se admitirem, futuramente, eventuais pleitos (claims), em lugar da assunção imediata dos sobrecustos conexos à manutenção de obras e canteiros, durante a paralisação.
Obviamente, esta primeira (e fundamental) providência pode se tornar complexa, conforme a multiplicidade de fatores a serem levados em conta. Recomenda-se, por isso, que o processo de eleição do plano de ação mais adequado considere, sempre, todas as dimensões do projeto, e não somente as nuances jurídico-contratuais.
A adoção de uma postura ativa, tal qual acima explicada, é a mais indicada, também, em relação aos contratos administrativos. Ao invés de aguardar por uma diretriz formal do contratante, recomenda-se ao particular, tanto quanto possível, que este se antecipe a qualquer orientação do Poder Público, apontando, desde já, os eventuais impactos sofridos e as medidas que entende imperativas para a preservação da relação contratual.
Qualquer que seja a solução posta em prática, é mandatório que as contratantes documentem, farta e analiticamente, as ocorrências e os eventos que estão impactando a execução do contrato, especialmente aquelas com efeitos diretos no equilíbrio econômico-financeiro da relação. Em tal cenário, emerge essencial a adoção de rotina de administração contratual cuidadosa e diligente, a fim de que sejam adequadamente registrados, tempestivamente, todos os efeitos particulares que a pandemia da COVID-19 possa ter sobre o projeto.
Os diários de obra, atas de reunião, relatórios mensais e (eventuais) notificações devem conter, portanto, o registro de eventuais comunicados ou atos de paralisação ou diminuição de ritmo de trabalho, de acordos sobre medidas preventivas ou mitigatórias (e respectivos atos de implementação), de equipamentos e mão de obra mobilizados, de materiais em estoque e, finalmente, dos impactos de custo e/ou de prazo (ou a ausência destes) durante o período atingido pela pandemia de COVID-19.
Frise-se que, em qualquer situação de crise, é determinante que as partes ajam para mitigar possíveis danos, para si ou para os demais envolvidos. A implementação destas providências – as quais constituem, inclusive, métrica de eventuais indenizações ou ressarcimentos – só será possível por intermédio de canais sólidos de comunicação.
Outra medida recomendada, especialmente em crises de grandes proporções e que afetem o interesse público, é o acompanhamento de novas medidas legislativas que forem promulgadas, como leis, medidas provisórias, decretos e portarias.
No caso da pandemia da COVID-19, estão sendo editadas, tanto pela União quanto por Estados e Municípios, diversas normas que impactam diretamente nas obras, incluindo medidas preventivas, novas regras trabalhistas, restrições de deslocamento, fechamento de meios de transporte e, em alguns casos, paralisação de obras. Nessas situações, a adoção de determinadas medidas pode se tornar obrigatória, afastando eventuais disposições contratuais que as partes tenham acordado.
Ainda que os riscos relacionados à ocorrência de fatos imprevisíveis e supervenientes sejam, por disposição contratual, alocados a apenas uma das partes, sugere-se, na máxima medida, que ambas as contratantes busquem cooperar com a implementação de medidas mitigatórias dos danos.
Nesse contexto, a adoção de planos de ataque pontuais e excepcionais, com vistas à recuperação de atrasos ou à aceleração das obras, é de inquestionável importância. Podem eles ser preferíveis, muitas vezes, à simples lógica de apresentação e de negociação de claims, consoante cada arrumação contratual em particular.
Por fim, recomenda-se analisar a conveniência de serem encaminhadas notificações rotineiras às seguradoras, para dar, a estas, ciência do contexto da obra e das medidas que estão sendo tomadas.
Buscar-se-á, com isso, evitar futuras negativas de cobertura, fundamentadas em agravamento de risco, em alteração de condições não comunicadas e/ou, ainda, à simples ausência de formalização das “expectativas de sinistro” e dos “avisos de sinistro”. A gestão e a observância de procedimentos prescritos em lei ou nas apólices, aliás, são especialmente importantes, nos contratos de seguro, em razão da relevância que a boa-fé tem em tais relações.
Também deverão ser cuidadosamente avaliadas as condições de contratação das apólices, para se verificar se os sinistros causados por pandemias se encontram cobertos.
Ademais, pode ser eficiente e desejada a instituição de “comitê gestor de crise”, formado pelas partes e pela seguradora, por meio do qual haja intenso intercâmbio de informações e de ideias, com a finalidade de minoração de prejuízos suportados por cada qual.
O País apresenta déficits sucessivos de investimento em infraestrutura. Este é, sem dúvidas, um dos maiores gargalos postos à retomada do crescimento da demanda interna, de basilar relevância no iminente panorama de retração dos mercados globalizados.
É certo que o segmento de infraestrutura apresenta, atualmente, muitas oportunidades latentes, as quais, possivelmente, deverão ser prioritariamente incentivadas pelo Governo, no curso e no médio prazo. Faz-se essencial, então, compreender quais mudanças de paradigma negocial, referentes à estruturação de novos projetos e contratos, podem trazer os maiores ganhos de eficiência jurídica e econômica, dado o conturbado pano de fundo que sucederá à pandemia de COVID-19.
De início, vale explicar que a atual conjuntura singular será levada em conta por juízes e árbitros que venham a decidir sobre futuras controvérsias respeitantes aos contratos de infraestrutura e construção. Por esta razão, é esperado que, cada vez mais, seja dada relevância à materialização dos princípios gerais do direito contratual, tais como os da boa-fé, da razoabilidade e da eficiência.
Ainda resiste, entre nós, cultura negocial segundo a qual o contrato representaria o resultado do embate de forças contrapostas. Não à toa, os contratos de infraestrutura e construção ainda são negociados e moldados com vieses relevantes de fiscalização e de responsabilização – é dizer, com pouco nível estrutural de cooperação, reflexo de esquemas rígidos de alocação de riscos e responsabilidades.
Ocorre que, em contexto marcado por agudas imprevisibilidades, mostram-se mais eficientes os arranjos contratuais que se pautem pela criação de estímulos positivos (bônus, prêmios) à boa conduta das partes, e não pela cominação de estímulos negativos (multas, indenizações).
É recomendável, então, nesse sentido, que as partes negociem e implementem mecanismos de compartilhamento de otimizações e de reduções de custos. De igual forma, traz vantagens sensíveis o delineamento, tanto quanto possível, de métodos cooperativos de superação de obstáculos e dificuldades executivas – em particular, no que tange à negociação conjunta, pelas partes, junto a subcontratados, fornecedores, clientes finais e autoridades governamentais.
Frise-se, aliás, que já é possível notar, neste incipiente período de enfrentamento da crise oriunda da pandemia de COVID-19, que matrizes rígidas de alocação de riscos e responsabilidades têm gerado, na prática, mais conflitos do que soluções. Não há dúvidas, assim sendo, de que este é o momento oportuno à revisitação destas balizas negociais tão ineficientes, ainda arraigadas no segmento de infraestrutura e construção.
Não tem sido incomum, no mercado de infraestrutura e construção, a apresentação de propostas técnico-comerciais de viabilidade incerta. Muitas vezes, tal ocorre em razão de expectativas (nem sempre plausíveis) de eficiência futuras ou de possíveis repactuações e/ou reequilíbrios econômico-financeiros.
Sugere-se, porém, que, em contexto de marcadas incertezas, seja adotada postura mais conservadora. É recomendável, por isso, a revisão de estudos de viabilidade técnico-comercial ainda pendentes, com o fim de se anteciparem, na medida do possível, os efeitos perniciosos que a pandemia da COVID-19 terá em relação a toda a cadeia logística e de suprimentos.
Em vista do fato de aludida pandemia já ser de conhecimento público (ainda que seu término seja insondável e seus prejuízos ainda não sejam mensuráveis), poderia haver dificuldades em argumentar, em relação a contratos em negociação, que aludido evento configuraria fato superveniente e imprevisível – requisitos necessários à configuração de caso fortuito ou de força maior, como acima explicado. Exatamente por isso, este é o momento adequado para que estudos de viabilidade, cronogramas, planos e frentes de ataque e condições de execução de obras sejam revisitados e readequados, consoante os potenciais reflexos da crise ora em ascensão.
Enquanto a crise perdurar, a probabilidade de impactos no dia a dia do projeto será inegável, inclusive no que toca à obtenção de matérias-primas e de mão de obra. Por isso, para os contratos cuja execução será iniciada durante esse período, é interessante que condições especiais sejam negociadas, para que vigorem até o reestabelecimento da normalidade.
Acaso não seja possível postergar a celebração do contrato, as partes poderão, p. ex., subordinar a eficácia do contrato a determinadas condições suspensivas, vinculadas à superação das consequências da pandemia da COVID-19.
Pode-se pensar, também, na constituição de reservas para contingências, previstas em contrato, voltadas a fazer frente a sobrecustos incorridos em função do contexto de crise. A liberação destes recursos poderá ser submetida ao reconhecimento, pela contratante, da necessidade do dispêndio, a bem da continuidade da obra, acordando-se a compensação destes valores com as parcelas subsequentes do preço do contrato.
Sugere-se sejam antecipados, negocialmente, os principais óbices que poderão surgir para a efetivação dos financiamentos subjacentes à implantação do projeto (v. subitem 1.4, acima). É aconselhada, primordialmente, a clara e precisa atribuição, a cada parte, dos riscos que lhe cabem em relação à (não) obtenção das condições de financiamento do projeto, a fim de serem evitadas discussões supervenientes.
Mostra-se factível, ainda, na linha do subitem 3.3, acima, a prescrição de condição resolutiva, no contrato, condizente à não confirmação dos meios de financiamento competentes, dentro de certo prazo. Sob tais pressupostos, uma vez não obtido, p. ex., o competente empréstimo de longo prazo, a relação contratual seria resolvida de pleno direito, cabendo às relações jurídicas já aperfeiçoadas o tratamento que o contrato dispuser.
Sem prejuízo da predileção por arranjos contratuais mais colaborativos (v. subitem 3.1, acima), é capital que as partes se dediquem, na atual conjuntura, à negociação mais cuidadosa das cláusulas referentes às condições e às hipóteses de repactuação de preço e/ou de prazo.
Reforce-se serem comuns contratos com cláusulas lacunosas ou demasiadamente genéricas, naquilo que respeita aos tópicos supramencionados. No contexto vigente, contudo, a precisa definição da abrangência e do cabimento dos mecanismos de reequilíbrio econômico-financeiro é imperiosa, sob pena de custosas e ineficientes controvérsias futuras.
Outro ponto importante diz com a necessidade de os contratos manterem coerência com as matrizes de alocação de responsabilidades e de riscos previstas em instrumentos conexos – p. ex., aqueles celebrados com subcontratados e clientes finais. O descasamento entre diferentes contratos pode representar a assunção, pela contratada ou pela contratante, de responsabilidades redundantes, tocantes ao mesmo evento, perante mais de um agente da cadeia contratual, o que implicaria em “alavancagem” dos potenciais prejuízos do projeto.
Evidentemente, diante da complexidade dos contratos de infraestrutura e construção, existem temas sensíveis que impossibilitam que as partes cheguem em acordo amigável e que, consequentemente, devem ser submetidos aos métodos existentes de resolução de disputas.
Em situações como o da pandemia de COVID-19, visando à maior celeridade (principalmente para questões que possuam caráter mais técnico), é recomendável o recurso, nos contratos de infraestrutura e construção, aos procedimentos de mediação, com auxílio de experts não vinculados a qualquer das partes.
Pode-se cogitar, também, com especial relevo, da figura do “Dispute Board“, dadas as notórias eficiências que este mecanismo traz à performance dos contratos. Este mecanismo pode evitar que se chegue a uma disputa judicial (ou arbitral), eis que seriam profissionais especializados em construção e infraestrutura que verificariam as circunstâncias de cada obra e apontariam a melhor solução ao caso, podendo ser esta decisão vinculativa/impositiva às partes (Dispute Adjudication Board) ou meramente recomendatória (Dispute Review Board).
Trata-se, sem dúvida, de medida preventiva de alto grau de especialização. O board poderia, então, ser instaurado tanto nas relações privadas quanto naquelas com o Poder Público, como se tem visto nos últimos anos.
A preferência por mecanismos alternativos de resolução de embates está crescendo, aliás, no âmbito dos contratos administrativos. No Município de São Paulo, p. ex., foi recentemente promulgada a Lei n. 17.324/2020, que instituiu a “Política de Desjudicialização” na seara da Administração Pública Municipal direta e indireta. Dentre outras medidas, previu-se a possibilidade de cláusula de mediação em contratos administrativos, convênios, parcerias, contratos de gestão e instrumentos congêneres da Administração Pública municipal, bem como a utilização da arbitragem para solucionar conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis (que não decorram de lei).
Outrossim, o Poder Judiciário também tem tomado medidas para mitigar a necessidade de judicialização das situações relativas à crise em curso. Foi recentemente anunciada, pelo Supremo Tribunal Federal, em conjunto com a Presidência da República, a criação do “Comitê Nacional de Órgãos de Justiça e de Controle”, destinado a resolver conflitos judiciais oriundos da pandemia da COVID-19.