Leonardo Toledo da Silva e João Paulo Pessoa*
28 de maio de 2020 | 08h30
Em 13 de maio, último, o presidente da República editou a Medida Provisória 966 (MP 966), que dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da covid-19, causando uma reação instantânea de diversos atores no cenário político e midiático. Diante do imenso barulho gerado pela MP 966, faz-se importante colocar a “bola no chão” e lançar um olhar técnico-jurídico sobre o referido ato, fazendo ainda um alerta sobre o que consideramos ser o principal perigo advindo da MP 966.
De início, é preciso esclarecer que o conteúdo da MP 966, em sua integralidade, é uma repetição do que já dispunha o art. 28 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), cuja redação foi recentemente alterada pelo pela Lei nº 13.655, de 2018. Segundo o art. 28 da LINDB, “O agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”. Essa redação veio a ser regulamentada, ano passado, pelo Decreto 9.839/2019, cujo art. 12 trazia a mesma redação, sobre caracterização de dolo e erro grosseiro, que aquela constante da MP 966.
Aliás, o próprio conceito de erro grosseiro trazido pela MP 966 não diverge do entendimento que tem sido adotado pelo Tribunal de Contas da União ao aplicar a Lei nº 13.655/2018 em seus julgamentos.
Em suma, o regime geral de responsabilização dos agentes públicos, desde 2018, já trazia, ipsis literis, todos os componentes de interpretação que vieram redigidos no corpo da MP 966. Não haveria, do ponto de vista lógico, qualquer razão para acreditar que a MP, por si só, abriu uma brecha interpretativa específica para prática de atos de improbidade, além do que o regime geral já previa.
Se é verdade que a MP 966 é “mais do mesmo” em sentido dogmático-jurídico, qual seria então o seu maior risco?
A nosso ver, dado o péssimo timing político de sua edição, a MP 966 poderá ocasionar um retrocesso em matéria de responsabilização dos agentes públicos, não pelo seu conteúdo, em si, mas pela perigosa reação política que poderá desencadear.
Vale explicarmos um pouco melhor o ponto.
A recente modificação da LINDB, em 2018, havia sido o resultado de um importante debate da comunidade jurídica brasileira, que procurava caminhos para lidar com alguns problemas associados à falta de segurança jurídica na tomada de decisão pelos agentes públicos.
Um dos problemas que a nova LINDB procurava endereçar, pelo seu art. 28, repetido pela MP 966, era justamente o que a comunidade jurídica e empresarial apelidou de “apagão das canetas”. , Uma série de precedentes adotados por órgãos de controle, não rechaçados adequadamente pelo Poder Judiciário, passou a buscar a responsabilização de administradores, em seu patrimônio pessoal, com base em padrões formais ou jurídicos que não conotavam qualquer conduta ímproba dos agentes.
Em muitas desse precedentes, o mero erro ou a não adoção de padrões formalistas eram elemento suficientes à responsabilização pessoal do gestor público. Havia um olhar confortável que, por vezes, julgava as decisões dos gestores públicos com um “olhar no retrovisor”, de quem julga uma decisão depois de se saber se ela foi, ou não, a melhor decisão, agindo como o que, coloquialmente, costumamos chamar de “engenheiro de obra pronta”.
Foi necessária a atuação do Superior Tribunal de Justiça (STJ), como instância revisora, para esclarecer que não se deve confundir ilegalidade com improbidade, não sendo possível a responsabilização objetiva do agente público, pois “a finalidade da Lei de Improbidade Administrativa é punir o desonesto, o corrupto, ou seja, aquele que descumpriu com os deveres de lealdade e boa-fé”.
O resultado desse conjunto foi uma paralisia decisória do gestor público, que impactou de forma preocupante os empreendimentos públicos, de maneira geral.
O art. 28 da LINDB, somado à regulamentação trazida pelo Decreto 9.830/2019, trouxe um elemento importante de estímulo à tomada de decisões. Ela trouxe em seu espírito algo que inclusive tem paralelo no regime de responsabilização dos administradores de sociedades anônimas: o princípio, com inspiração em precedentes norte-americanos, chamado de business judgement rule. Por esse princípio, o ato do administrador razoavelmente bem informado e que age com boa-fé deve ser presumido como em conformidade com o dever de diligência.
O espírito da business judgement rule era justamente garantir que não houvesse um entrave à tomada de decisões pelos administradores, que, por essência, assumirão riscos ao decidir, mas que, ainda assim, terão de decidir com agilidade.
Não se pode confundir o conteúdo do art. 28 da LINDB com uma tentativa simplista de aliviar a responsabilidade pessoal dos gestores públicos mal intencionados. Não é esse o espírito do dispositivo construído. Qualquer uso, nesse sentido, é um óbvio desvirtuamento de seu sentido.
Mas daí surge a questão óbvia: a MP 966, que repete os dispositivos da LINDB, é então bem-vinda?
Acreditamos que não.
Primeiro porque, de forma redundante, ao trazer um regime especial para lidar com a COVID-19, que, no fundo, é uma cópia idêntica do regime geral já vigente, ela pode dar margem a uma certa confusão interpretativa de regimes aplicáveis, sobretudo se, ao final de sua vigência, a medida não vier a ser convertida em lei.
Por fim, e esse, a nosso ver, é o principal perigo da MP 966, é que, quando for analisada pelo Congresso Nacional, a medida receba um olhar muito mais retórico-político do que técnico-jurídico. E aí, o calor político do momento poderá gerar modificações à MP 966, quando de sua eventual conversão em lei, que atrapalhe ou até desconfigure o regime geral trazido pelo art. 28 da LINDB, que havia sido uma conquista recente do sistema jurídico brasileiro na busca do reforço à tão desejada segurança jurídica nas relações público-privadas.
Não é só a esfera legislativa que preocupa. Veja-se que já foram propostas pelo menos 6 (seis) ações direta de inconstitucionalidade contra a MP 966 (ADI 6428, ADI 6424, ADI 6421, ADI 6422, ADI 6425, ADI 6427). Caso as ações não percam o objeto em razão da perda de eficácia da MP, na hipótese de não ser convertida em lei pelo Congresso Nacional, caberá ao Supremo Tribunal Federal (STF) bem delimitar a discussão para evitar um retrocesso jurídico no tema da responsabilização dos agentes públicos.
Assistiremos de perto esse processo, torcendo para que o barulho ensurdecedor dos ruídos leigos não abafem um olhar racional e técnico sobre um tema tão complexo e sensível.
*Leonardo Toledo da Silva, sócio de Toledo Marchetti Advogados, mestre e doutor em Direito pela USP, professor da FGV Direito-SP, presidente do Instituto Brasileiro de Direito da Construção; João Paulo Pessoa, sócio de Toledo Marchetti Advogados, mestre e doutor em Direito do Estado pela PUC-SP, onde é professor do Curso de Especialização em Direito Constitucional.
https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/o-real-perigo-da-mp-966/