João Paulo Pessoa e João Marcos Neto de Carvalho*
27 de março de 2020 | 16h15
Tem-se visto, nos últimos dias, uma profusão de normas jurídicas restritivas a diversas atividades econômicas sob o argumento de diminuir os impactos da pandemia do coronavírus. Além de Medidas Provisórias editadas pelo presidente da República, são inúmeros os decretos estaduais e municipais que reconhecem o estado de calamidade pública em seus territórios e decretam a quarentena para diminuir a locomoção de pessoas.
Não se discute a importância de que sejam tomadas medidas excepcionais num contexto totalmente atípico e tão sensível. Evidentemente, o Poder Público deverá se pautar pelas limitações constitucionais aos atos administrativos (legalidade, dever de motivação etc.) e garantias dos direitos fundamentais, pautando-se pela razoabilidade e proporcionalidade em suas escolhas.
Mais preocupante, contudo, tem sido a adoção desvairada, nas inúmeras esferas federativas, de atos restritivos que colidem com decisões de outros entes federativos, ocasionando enorme insegurança jurídica. Situações mais emblemáticas desse tipo são as tentativas dos Municípios de bloquearem estradas para proibir o ingresso de pessoas em seu território. Já é de conhecimento público que a doença (covid-19) causada pelo coronavírus foi reconhecida como pandemia pela OMS. Isso implica reconhecer que soluções municipais isoladas não serão suficientes para combater da melhor forma possível tal pandemia.
Ações açodadas e conflitantes, ao invés de contribuir para o eficiente combate à pandemia do coronavírus, servirão apenas para gerar cada vez mais insegurança e confusão num momento que exige coordenação e cooperação de todos, especialmente do setor público.
É preciso que os entes federativos reconheçam que a Constituição impõe uma ação coordenada e cooperativa entre eles, tendo instituído um sistema federativo cooperativo. A Constituição estruturou um complexo sistema de repartição de competências que busca, em última análise, de preservar a coexistência harmônica entre os entes federativos. Contemplou cada ente com competências próprias, adotando o princípio da predominância do interesse.
Sem olvidar os conflitos que podem decorrer da execução das competências federativas, a Constituição prevê que “leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional” (art. 23, parágrafo único).
Evidentemente, o processo de aprovação de uma Lei Complementar não é simples, exigindo aprovação por maioria qualificada. Por essa razão, não se imagina que teremos uma Lei federal equalizando o papel de cada ente federativo no enfrentamento de calamidades públicas com fortes impactos nos próximos dias.
Enquanto não imperar o bom senso e o diálogo entre a União, Estados, Distrito Federal e Municípios e, na ausência destes, inexistir uma norma jurídica mais clara para delimitar uma atuação coordenada entre os entes federativos em momentos de crise como a que estamos vivenciando, caberá ao Judiciário solucionar os inúmeros conflitos que estão existindo.
É o caso da decisão do Presidente Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, de 22/03/2020, que acolheu Pedido de Suspensão de Liminares proposto pelo Estado de São Paulo[1] para reestabelecer o fluxo em diversos trechos de rodovias que haviam sido bloqueados por decisões liminares proferidas em ações civis públicas propostas por alguns Municípios e pelo Ministério Público do Estado de São Paulo. A decisão reconhece que “medidas necessárias à contenção da pandemia de covid-19 precisam ser pensadas em um todo coerente, coordenado e sistêmico” e que “a coordenação, a ser exercida pelo Poder Executivo, é imprescindível. Somente uma organização harmônica e organizada ensejará a adoção das medidas necessárias e abrangentes. Nesse contexto, aliás, a recente e louvável determinação de quarentena em todo o Estado de São Paulo”.
No âmbito do Estado de São Paulo imperam, portanto, os Decretos editados pelo Governo estadual, os quais, por imporem medidas restritivas, devem ser interpretados restritivamente, em especial quanto às atividades que devem ser suspensas.
Daí porque a pretensão de alguns municípios paulistas de suspender as obras de construção civil deve ser analisada em conformidade com o Decreto nº 64.881/2020, que decretou a quarentena no Estado de São Paulo, e com o Decreto nº 64.864/2020, que instituiu o Comitê Administrativo Extraordinário Covid-19.
Coube ao referido Comitê Administrativo esclarecer, por meio da Deliberação 2, de 22/03/2020, que não estão abrangidas pela medida de quarentena, dentre outras atividades lá elencadas, “construção civil e estabelecimentos industriais, na medida em que não abranjam atendimento presencial ao público”.
Além disso, a mesma Deliberação pontuou que o Decreto estadual prevalece sobre normas em sentido contrário editadas pelos Municípios: “a decretação de quarentena levada a efeito pelo Decreto nº 64.881, de 22 de março de 2020, na medida em que objetivou conferir tratamento uniforme a restrições direcionadas ao setor privado estadual, prevalece sobre normas em sentido contrário eventualmente editadas por Municípios”.
As recentes decisões do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade de alguns dispositivos da Lei nº 13.979/2020 e das alterações promovidas pelas Medidas Provisórias nº 926 e 927, são outros exemplos dessa situação. Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6343, por exemplo, o Min. Marco Aurélio indeferiu o pedido liminar formulado pelo partido Rede Sustentabilidade para que fossem suspensos os dispositivos que tratam do transporte intermunicipal durante a pandemia do novo coronavírus. De acordo com a decisão, “o momento é de crise aguda envolvendo a saúde pública. Tem-se política governamental nesse campo, com a peculiaridade de tudo recomendar o tratamento abrangente, o tratamento nacional”.
É importante ressalvar que não se nega a cada ente federativo competência para adotar medidas que objetivam o combate à pandemia do coronavírus. Deve-se ter em mente, contudo, que esse enfrentamento dependerá de uma ação coordenada e conjunta entre os diversos entes federativos. É o momento de prestigiar o federalismo cooperativo, ao invés do federalismo caótico, que é contrário ao mínimo de segurança jurídica necessária para o eficaz engajamento da sociedade no enfrentamento da pandemia do coronavírus.
*João Paulo Pessoa e João Marcos Neto de Carvalho são advogados do Toledo Marchetti Advogados
[1] Processo nº 2054679-18.2020.8.26.0000.
https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/infraestrutura-federalismo-caotico-e-pandemia/